Integrantes de coletivo e ex-usuários do serviço relatam riscos para a saúde causados pela interrupção do tratamento e também pela automedicação gerada pela falta de alternativas. Questionário vai reunir demandas da população trans e conselho avalia denunciar caso ao MP. Centro de Especialidades Médicas de Piracicaba
Divulgação/ Câmara Municipal de Piracicaba
Ex-pacientes e entidades que representam a população LGBTQIA+ apontam que a rede municipal de saúde de Piracicaba (SP) está há mais de um ano sem oferecer terapia hormonal para pessoas trans da cidade. A ONG Casvi (Centro de Apoio e Solidariedade à Vida) e o Conselho Municipal de Políticas Públicas para LGBT cobram a instalação de um ambulatório para essa população e apontam que a instalação desse equipamento público está aprovada desde 2019, em uma conferência.
A terapia hormonal permite que a pessoa trans adquira características do sexo com o qual se identifica.
Técnico em segurança do trabalho e integrante do Coletivo Trans da ONG Casvi, Linus Boueri Ferraz de Arruda, de 37 anos, é um homem trans e começou a realizar sua terapia hormonal em 2015, no Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do CRT (ASITT/CRT-SP), em São Paulo (SP), uma vez que o serviço não era oferecido em Piracicaba à época.
Linus conta que foi o primeiro a conseguir transporte público da prefeitura para ir semanalmente para o tratamento, justamente com auxílio do Casvi. “Eu fui na prefeitura tentar pedir o transporte e foi muito difícil, por questões até de transfobia institucional, não me atenderam. Aí o Anselmo [Figueiredo, coordenador do Casvi e presidente do Conselho Municipal de Políticas Públicas para LGBT] e o Casvi ajudaram e conseguiram marcar o transporte para mim e conseguiram também para outras pessoas [trans] que estavam com dificuldade com transporte ao CRT”, relata.
Segundo ele, à época, a alegação da prefeitura para inicialmente não conceder o transporte era de que não se tratava de um caso de “emergência vital”.
Anselmo, Kacau e Linus integram a ONG Casvi, em Piracicaba
Gabriel Oliveira
Em 2017, o serviço foi implantado em Piracicaba, após pressão do Casvi, em uma sala no Centro de Especialidades Médicas (CEM), no Centro da cidade. No entanto, a equipe era composta apenas por uma cardiologista e uma assistente social e o atendimento ocorria somente às sextas-feiras, das 7h às 11h.
Linus conta que, apesar da disponibilização de um atendimento básico, a equipe não era preparada para o relacionamento com a população trans. E cita como exemplo posturas como chamar a pessoa pelo nome de batismo. Decretos federal, estadual e municipal determinam o tratamento pelo nome social.
A personal bronzer Kacau Vitio, que tem 28 anos, é uma mulher trans e também integra o Coletivo Trans da ONG Casvi, conta que a demanda de pacientes cresceu e, no final de 2021, eram mais 100 pessoas sendo atendidas pelo serviço.
“Só que eram mais de 100 pessoas trans passando, somente de sexta-feira, e somente das 7h às 11h. Então, foi ficando bastante ‘puxado’ para a médica, porque era a única que atendia. Mesmo sendo só de sexta-feira e somente de manhã, foi ficando puxado para ela, porque tinha toda essa demanda só para ela atender”.
Segundo ela, nessa época a profissional foi transferida para substituir um cardiologista que se aposentou, no próprio CEM, e deixou o atendimento da população trans. “A gente está sem o atendimento desde então”, lamenta. Os dois integrantes do Casvi explicam que, atualmente, só está disponível na farmácia do CEM a entrega do hormônio, que é enviado pelo governo estadual.
“Mas, sem médico para passar a receita, não tem como pegar. Alguns clínicos gerais de postinho, dependendo do bairro que você mora, se o doutor quiser se responsabilizar e passar para você a receita e ler o exame, algumas pessoas estão conseguindo isso”, conta Kacau.
Por isso, a ONG cobrou oficialmente da prefeitura, via ofício, a retomada emergencial da hormonoterapia. O Casvi também não descarta denunciar o caso ao Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP).
“Hoje é uma demanda emergencial da prefeitura olhar para isso e o secretário de saúde [Filemon Silvano] nos atender. Nós mandamos um ofício no meio do ano passado para o secretário de Saúde e até hoje ele não nos atendeu”, revela Anselmo.
Integrantes do Coletivo Trans do Casvi durante apresentação de questionário para população trans na semana passada
ONG Casvi
Automedicação, efeitos colaterais e riscos
Com a falta do acompanhamento médico especializado, a alternativa que acaba sendo adotada pela maioria das pessoas que não conseguem o atendimento na rede particular é se automedicar, segundo integrantes da ONG.
“Qual é a consequência? Suicídio, automutilação, automedicação, que é uma coisa que a gente vê acontecendo com muitas pessoas trans”, lamenta Anselmo.
“[Existem] efeitos colaterais que a terapia hormonal causa, e é aí que entra o papel importante de se passar com um clínico, com um endocrinologista, porque são vários efeitos colaterais. Entre eles, trombose, embolia pulmonar, AVC, câncer, doenças do fígado e rim. Então, por isso que é importante a gente passar com endocrinologista, porque a gente precisa fazer exames de seis em seis meses para ver como está nossa taxa hormonal e pra ver se a gente está desenvolvendo alguma complicação com o uso dos hormônios”, detalha Kacau.
Ela também aponta que a interrupção da terapia afeta a condição psicológica dos pacientes, já que gera desequilíbrio hormonal e, consequentemente, casos de depressão e disforia de gênero.
“Foi um abandono de mais de 100 pessoas trans que passavam para ali. Nossa comunidade ficou abandonada de uma hora para outra. Tiveram que interromper o tratamento que fazia. Isso vai gerar um desequilíbrio hormonal para todo mundo”.
Reunião do Casvi para apresentar o questionário para a população trans, no último dia 15
ONG Casvi
Questionário e cobrança de ambulatório
No último dia 15, a ONG e o Conselho Municipal de Políticas para LGBT lançaram um questionário destinado para a população trans de toda a região de Piracicaba. Segundo Anselmo, ele vai servir como uma espécie de Censo desses moradores e moradoras e o prazo para preenchimento será até 15 de maio. O questionário pode ser acessado neste link.
“A proposta do questionário é ouvir quais são as principais demandas da população trans de Piracicaba e região e, principalmente, saber quantas têm acesso ao processo transexualidador, como terapia hormonal, retificação do nome na certidão de nascimento em cartório, acesso a educação, mercado de trabalho, taxa de desemprego, etc”, explica.
O objetivo é levar para o Plano Municipal de Políticas para população LGBTQIA+ de Piracicaba demandas reais da população de pessoas trans e principalmente reivindicar junto ao Poder Público municipal e estadual a criação de um Ambulatório de Saúde Integral para pessoas trans no Hospital Regional de Piracicaba (HRP).
O presidente do conselho aponta que a intenção é cobrar um serviço mais estruturado e especializado, com equipe multissetorial.
“Um ambulatório para travestis e transexuais adequado como a gente tem lá em São Paulo, ele tem vários profissionais. Proctologista, urologista, cardiologista, tem de ter psicológo e psiquiatra acompanhando o trabalho, clínico geral, endocrinologista para receitar hormônios. Tem até fono porque, quando começa a tomar o hormônio e usar o bloqueador, começa a ter alteração na voz”, exemplifica.
Segundo Anselmo, em 2019, na 8ª Conferência Municipal de Saúde de Piracicaba, foi aprovada a criação de ambulatório para transexuais, com todos os profissionais que esse tipo de unidade necessita, mas o projeto nunca foi implantado.
O conselho e a ONG também pretendem levar o caso ao governo estadual, para discutir a viabilidade da implantação da unidade no HRP.
Arte criada pelo Casci para divulgar o questionário para a população trans
Casvi
O que diz a prefeitura
Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde informou que enfrenta dificuldades para a contratação de médicos, entre eles, endocrinologistas, que acompanham o tratamento de pessoas trans. O déficit tem sido relatado pela atual gestão desde 2021.
“Mesmo com essa dificuldade, o fornecimento do medicamento para as pessoas trans que já realizam ou já eram acompanhadas pelo Centro de Especialidades Médicas (CEM) é garantido e elas podem realizar a renovação da receita com médicos da Atenção Básica e retirar o medicamento na farmácia do próprio CEM, o Postão, atrás do Mercado Municipal”, acrescenta.
Ainda sobre a contratação de médicos, a prefeitura afirma que tem trabalhado em várias frentes para a reposição destes profissionais com a realização de concursos e processos seletivos que, infelizmente tiveram baixa adesão, já que os salários desses profissionais estão defasados há anos.
A administração destacou que na sexta-feira (24) um projeto que prevê reajuste salarial dos servidores municipais e ampliação do teto constitucional foi aprovado pela Câmara, o que possibilitará o reajuste dos salários dos médicos. Com isso, o governo municipal espera atrair profissionais médicos.
“Em breve, também deve ser aprovada a adesão de Piracicaba ao Cismetro (Consórcio Intermunicipal de Saúde) que suprirá as necessidades de médicos especialistas para a rede, que incluem as especialidades mais críticas em deficiência e ausência na SMS”, informa.
Sobre a receita necessária para retirar os hormônios, a Saúde ressaltou que o médico deve colocar de próprio punho seu CPF e o CID. “Não é norma da farmácia e sim uma Portaria Federal que é respeitada pela SMS para dispensação dos hormônios. Para a dispensação do medicamento, é necessária apresentação de receita branca conforme Portaria 344/98, documento do responsável pela retirada, cartão branco da unidade a que o usuário pertence”, finalizou.
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