Atraído por riqueza do café, François Cassoulet chegou à ‘Petit Paris’ no fim do século XIX e rapidamente se destacou como administrador de entretenimentos. ‘Rompeu tradicionalismo’, diz historiadora. Representação de François Cassoulet, presente em artigo da historiadora Benedita Luiza da Silva Lourencini
Divulgação/Arquivo pessoal
A história do carnaval em Ribeirão Preto (SP), comemorado nesta terça-feira (21), ultrapassa os limites do estado e até mesmo do Brasil. Hoje vista como manifestação popular, a festa teve a contribuição de um francês para deixar os lugares então frequentados pela elite e ganhar as ruas centrais da cidade há quase 130 anos.
O empresário François Cassoulet chegou a Ribeirão no final do século XIX e, de um simples imigrante, rapidamente se notabilizou como o grande administrador de entretenimentos no município, atuando em frentes como teatros e casas noturnas.
Entre suas principais ações, o francês abriu alas para os primeiros desfiles com carros alegóricos pelo chamado “quadrilátero central”, conforme explicam pesquisadores ouvidos pelo g1. (veja abaixo)
Nesta reportagem, você vai descobrir que a história dele é influenciada por períodos históricos como o apogeu da economia cafeeira em Ribeirão, a Belle Époque e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), fator que impulsou a queda do seu “império”.
‘Existe o antes e o depois de Cassoulet’, diz historiadora sobre francês
A chegada
Devido à falta de documentação, a passagem de Cassoulet pelo interior paulista é repleta de contradições. Até sua imagem é rara, mas foi reproduzida na pesquisa de uma historiadora. (veja acima)
O que se sabe, porém, é que ele desembarcou na cidade em 1897 pela Estação Ferroviária da Mogiana, que viria a ser desativada em 1967.
É o que explica o autor ribeirão-pretano Matheus Marques Nunes, que se debruçou sobre a história de François por mais de dois anos para escrever o romance “As memórias de um francês em Ribeirão Preto” (2021).
“Ele desembarca em Santos, passa um curto período em São Paulo e vem para Ribeirão Preto em um momento em que a cidade já despontava como grande polo na produção de café em função da ferrovia Mogiana. Vinha atraindo muito imigrantes. Não só pela mão de obra para o café, mas também empresários e investidores”, conta o autor.
O local de nascimento e a idade de François ao chegar à “Petit Paris” – Pequena Paris -, como Ribeirão era chamada pelos traços de sua urbanização, também são alvo de discussão. Estima-se que, à época, ele teria cerca de 30 anos.
Em seus primeiros anos no município, viveu com uma francesa chamada Marie, com quem nunca chegou a ser casado oficialmente. Foi ao lado dela que ele iniciou sua trajetória como empresário.
Estação Mogiana em 1920 em Ribeirão Preto, SP
Jornal da Vila/Acervo
Atuação
Cassoulet começou a empreender na cidade com o Eldorado, espécie de café-dançante e bordel. Apesar de simples, o estabelecimento construído em um terreno baldio no Centro atraía pessoas influentes como políticos e empresários.
“Deu certo, porque Ribeirão Preto tinha essa carência na época. Pessoal tinha dinheiro, mas estava distante de São Paulo”, pontua Nunes.
Com o sucesso do Eldorado, François expandiu sua área de atuação, mas já não estava mais com Marie. Na virada do século, passou a se envolver com uma austríaca chamada Fanny Blumenfeldt, que já tinha experiência na administração de casas noturnas.
Ao lado dela, o francês geriu teatros como Polytheama e Carlos Gomes, demolido na década de 1940 e que ficava onde hoje é a Praça Carlos Gomes.
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Sua atuação mais famosa, no entanto, foi no Cassino Antarctica, ressalta a historiadora Benedita Luiza da Silva Lourencini, autora do artigo “O Rei da Noite na Eldorado Paulista: François Cassoulet e os Entretenimentos Noturnos em Ribeirão Preto” (2000).
“Nesse cassino, consta-se que, de onde vem os recursos dele, são dos jogos e da prostituição. Como ele começou a ter sucesso, foi administrar várias outras coisas, como cinemas e restaurantes”, conta a historiadora.
O Cassino Antarctica ficava na esquina entre as ruas Américo Brasiliense e Amador Bueno, onde atualmente funciona uma agência bancária. Para estar perto do negócio, François chegou a morar em uma casa em frente ao cassino.
O lado comercial, segundo Benedita, não foi abandonado por Cassoulet enquanto ele promovia a folia de carnaval para o povo.
Como eram as festas
François colocava para desfilar nos corsos, carros de luxo ornamentados, dançarinas e prostitutas que se apresentavam nos seus estabelecimentos – uma das intenções, conforme a historiadora, era chamar a população para os espetáculos.
As ações aconteceram, principalmente, durante a década de 1910 pelo quadrilátero central, aglomerado de quadras e ruas entre as avenidas Jerônimo Gonçalves, Nove de Julho, Independência e Francisco Junqueira.
Os desfiles eram regados a marchinhas, serpentinas, confetes e lança-perfumes. Registros da Prefeitura apontam que, à época, a população da cidade não ultrapassava 20 mil pessoas.
“As mulheres que o Cassoulet trazia chegaram a ser símbolo de cultura da Belle Époque. Algumas eram polonesas e se passavam por francesas, já que havia esse ‘charme’ da cultura francesa. Ele promovia desfiles de carro, e isso era uma novidade para a época”, completa Benedita.
Além dos desfiles, o empresário se destacou pelos bailes carnavalescos em seus estabelecimentos. Nos eventos, que costumavam reunir a elite ribeirão-pretana, Cassoulet introduziu o uso das máscaras, símbolo de luxo na cultura francesa, destaca a pesquisadora.
Além de prostitutas e dançarinas, Benedita afirma que François também contratava artistas de companhias internacionais. Para o autor Matheus Marques Nunes, isso reforça a influência que o empresário tinha como o “Rei da Noite” em Ribeirão.
“Estavam comentando, ultimamente, essa questão de Ribeirão Preto passar a fazer parte do cronograma de show internacionais. Ele já fazia isso lá atrás. Ribeirão já era um ponto de destaque, recebendo artistas que vinham para São Paulo ou Rio. Artistas de ópera e de teatro”, argumenta Marques.
Desfile de carnaval em Ribeirão Preto, SP, na época de François Cassoulet
Divulgação/Benedita Luiza da Silva Lourencini
Falência
Segundo a historiadora, a queda do império de Cassoulet está diretamente relacionada aos impactos da Primeira Guerra Mundial. Com os conflitos, as atividades dos negócios ficaram suspensas, causando prejuízo ao empresário.
Além disso, nesse meio tempo, ele já havia tido uma grande perda: a companheira Fanny, vítima da epidemia de febre amarela que assombrou a região no início do século XX.
“Durante a guerra, não se abria o cassino. Mas a falência dele começa por aí. Ele é substituído em vários estabelecimentos que administrava e começa a decair socialmente”, diz Benedita.
Conforme passagem do artigo “Um empresário teatral: Françóis Cassoulet, administrador do Teatro Carlos Gomes em Ribeirão Preto” (2007), escrito por Diogo da Silva Roiz e Jonas Rafael dos Santos, Cassoulet declarou, em sua massa falida, “que sempre contribuiu não só com grandes somas de dinheiro para o (…) incremento [de suas casas teatrais], como arcou com grande responsabilidade e com sacrifício de sua saúde para a sua manutenção”.
Sem esposa e sem filhos, o francês sofreu um “amolecimento cerebral”, hoje conhecido como derrame, e viveu seus últimos dias no Hospital Beneficência Portuguesa, conforme levantado por Nunes.
“Acaba sendo um final bem melancólico, porque, quando entra a decadência, ele cai no esquecimento. Antes era bem noticiado e depois é esquecido. Depois de morrer, foi enterrado quase como um indigente em 1919, no Cemitério da Saudade”, completa.
Legado
Para Benedita, a história do carnaval na cidade se divide entre dois momentos: antes e depois de Cassoulet. Ela explica que, intencionalmente ou não, o francês foi um dos pilares para a popularização da festa.
Anos depois da morte dele, surgiria a Sociedade Recreativa Dançante Bambas, considerada a primeira escola de samba em Ribeirão.
“Não tenho dúvida que ele divide a história do lazer em Ribeirão Preto. Na minha opinião, Cassoulet rompeu com essa coisa tradicional antes dele. Tanto que, no meu trabalho, digo que o sucesso de Ribeirão Preto não veio do café, mas sim das casas noturnas. A questão do nu, do sexo, tudo isso veio trazido com a prática sexual que vem da França. Na verdade, o Cassoulet é apenas esse intermediário”, afirma a historiadora.
Já o secretário da Cultura e Turismo de Ribeirão Preto, Pedro Leão, destaca o sincretismo adquirido pela festividade a partir das ações do francês.
“Acho que a contribuição foi positiva, pois abriu uma porta que, nós, ribeirão-pretanos e brasileiros, soubemos percorrer. Afinal de contas, em pouquíssimo tempo o Carnaval em Ribeirão Preto agregou características próprias”, conclui.
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